Kuhn e a revolução psicológica
sobre revoluções científicas e caminhos
By Gabriel Nakamura in chronicles
May 1, 2021
Costumo dizer que nasci sem gps, e isso é genético, pois minha mãe também nasceu assim (apesar de não saber sobre o sistema de localização da minha vó). Para aprender a andar em um lugar novo preciso de muitos meses de prática, e na verdade o que eu acho que realmente acontece é mais uma decoreba dos lugares por onde passo que a criação da noção de localização no espaço.
Mas pra compensar a péssima noção de localização até que tenho uma boa memória, o que facilita a decoreba das ruas e permite que eu volte para casa ou vá no mercado sem que erre o caminho. Essa inabilidade incrível que tenho de não conseguir me localizar facilmente fez com que criasse o hábito de fazer os mesmos caminhos todos os dias, com poucas variações e improvisações que poderiam me levar ao banco quando na verdade gostaria de chegar na padaria.
Numa dessas poucas vezes que resolvi me arriscar em mudar o caminho tive uma bela surpresa, não leitor, não me perdi, o ocorrido foi o seguinte: sempre faço o mesmo caminho para ir ao mercado, sigo reto numa rua, viro a esquerda em outra, pego uma escadaria (sim, tem uma escadaria no meio da rua no bairro onde moro) onde encaro 80 degraus acima como um atalho para outra rua, viro a direita, sigo reto e pronto, estou em segurança no mercado. Pego minha granola e meu iogurte, e me preparo para volta. O caminho de volta é um pouco diferente, ao invés do descrito acima, evito encarar os 80 degraus escadaria abaixo. Neste dia resolvo inovar, e me embrenho por uma outra rota (se é que tem como inovar em um espaço de 1km de distância).
Voltando tranquilamente pelo meu caminho não ordinário me surpreendo com uma bela paisagem a vista, onde no horizonte vejo uma Porto Alegre até então não apreciada. Penso comigo: se soubesse faria mais vezes esse caminho. Um olhar um pouco mais atento a minha volta e me surpreendo: estou na mesma escada ordinária que encaro na ascendente para chegar ao mercado, com a diferença que agora estou fazendo o caminho contrário, descendo os 80 degraus. Minha surpresa não se dá por conta de não ter notado prontamente que estou na mesma escadaria que uso no caminho de ida ao mercado, afinal meu não senso de direção já não é surpresa, mas sim o fato de como um mesmo local, que conheço tão bem (vou ao mercado várias vezes na semana), pode se mostrar tão diferente pelo simples fato de estar vendo ele a partir de um ponto de vista diferente!?.
Penso um pouco mais se essa estranheza não foi um problema de fábrica do meu gps, trata-se mesmo de algo decorrente de uma mudança de perspectiva. Estou falando daquele mesmo fenômeno que faz com que vemos um rosto de uma mulher na figura do Einstein, dependendo da maneira como olhamos. De maneira bem resumida, estamos olhando uma mesma figura, mas dependendo da maneira como a olhamos enxergamos coisas diferentes, e isso é um fenômeno psicológico.
Esse mesmo fenômeno que aconteceu comigo na escada, quando a olhei de outra perspectiva, com você ou sua vó quando olharam a figura acima e discordam se veem uma taça ou duas faces. Isso também é o que acontece com os cientistas ao tentar interpretar o mundo através de diferentes teorias, e aqui chegamos ao ponto que gostaria de destacar e que foi levantado por um cara muito sagaz chamado Thomas Kuhn.
Thomas Kuhn foi um físico alemão conhecido principalmente por seus livros de filosofia e história da ciência. O filho mais famoso chama-se A Estrutura das Revoluções Científicas, “A estrutura”, para os mais íntimos. A Estrutura trata-se de um livro em que a ideia principal, é bem conhecida e aceita no meio científico. Resumindo brevemente a mensagem de Kuhn: A ciência progride através de processos que ele chama de revoluções, não são mudanças graduais, nem acúmulos graduais de conhecimento que levam ao progresso da ciência, isso é apenas parte do processo do qual ele chama de Ciência Normal, mas saltos no entendimento e uma nova perspectiva para a compreensão do mundo se dá através de uma revolução, ou seja, uma mudança abrupta das crenças científicas em vigor, denominada por ele de paradigmas, por outras novas totalmente diferentes.
Essas são as ideias gerais que são mostradas nos livros didáticos quando se fala sobre o ponto de vista Kuhniano de como a ciência evolui. Porém o que eu quero destacar aqui é outro ponto, muito menos destacado, mas central para o argumento de Kuhn, de que as revoluções envolvem um fenômeno psicológico, onde aquilo que os cientistas viam de uma maneira (a natureza) passa a ser visto de outra totalmente diferente. Fazendo um paralelo com a passagem das escadas que iniciei esse texto, é como se a ciência normal fosse a minha perspectiva da paisagem vista da escada quando eu subia ela todos os dias para ir ao mercado, após a revolução existe uma mudança de perspectiva na maneira como vejo a mesma escada, ou seja, seria a visão da paisagem da escada que me surpreendeu o dia que a desci, ou seja, vejo a mesma coisa, porém uma mudança de perspectiva me faz até pensar que estou vendo outra totalmente distinta.
O fato de Kuhn tratar as revoluções científicas como um fenômeno psicológico é alvo de várias críticas, afinal de contas, como os cientistas podem cair num fenômeno psicológico? Cientistas são pessoas treinadas para não serem enganados por fenômenos que não envolvam estritamente o domínio dos fatos, da realidade. Porém, apesar de ser alvo de critica, este é o ponto que acho interessante destacar. Kuhn traz as nuances da mente humana para entender como se dá o processo de progresso científico, acima de cientistas somos humanos, logo, estamos sujeitos as armadilhas psicológicas pregadas por nossa complexa mente. Portanto, por que não pensar que tais artífices psicológicos dos quais estamos sujeitos não sejam parte integrante do processo de revolução científica? Esses efeitos psicológicos merecem sim seu lugar no processo de progresso científico.
A grande ideia de Kuhn é que, uma mudança de paradigma acarreta em uma mudança na maneira como vemos o mundo a nossa volta. Nas próprias palavras do físico, essa revolução é como se “… a comunidade de profissionais da ciência fosse de repente transportada para outro planeta onde objetos familiares são vistos através de uma perspectiva diferente em conjunto com objetos não familiares”. Parece um tanto mítico, não é? Mas é como no evento da escada, conheço tudo que há naquele local (objetos familiares), mas eles são vistos de uma outra perspectiva (de cima para baixo, e não de baixo para cima, como de costume), e estes se juntam a novos objetos (a bela paisagem da qual nunca tinha me atentado), o que gera a sensação de estar experimentando um novo mundo, pela simples mudança de perspectiva. Kuhn é ainda mais direto nesse ponto, afirmando: “o que eram patos no mundo científico antes da revolução, passam a ser coelhos após” e “o homem que primeiramente viu o exterior da caixa a partir de cima, mais tarde vê se interior a partir de baixo”.
Obviamente as coisas não são tão abruptas assim, mas a mensagem que Kuhn quer nos passar é que o que víamos antes, com a revolução científica, com as mudanças de paradigmas, é visto de maneira totalmente diferente depois, mesmo se tratando das mesmas coisas, mesmo não sendo transportados para outro mundo, mesmo não acontecendo uma mágica que transforme patos em coelhos, isso é simplesmente o efeito psicológico decorrente da nova maneira que interpretamos o mundo. Se os conceitos e ferramentas da qual temos disponíveis para ver o mundo mudam, o nosso mundo (como uma interpretação mental) também muda.
Kuhn é criticado por dar ênfase a essa mudança psicológica que é acompanhada após as revoluções científicas, mas é justamente esse o ponto que acho interessante na sua argumentação, pois destaca o momento em que a complexidade da mente humana se encontra com as mudanças científicas, causando a mudança nas nossas interpretações do mundo. Me pergunto, uma simples mudança de direção na forma como passo pelas escadarias que mencionei no inicio do texto já me faz parecer que estou em outro lugar, pense em uma mudança profunda na maneira da qual interpretamos a natureza, uma grande revolução, o que pode causar com a forma como vemos o mundo? A resposta certamente é uma mudança profunda. Para finalizar, o grande recado vindo diretamente das escadas de 80 degraus é: a ciência muda o mundo, e essa mudança não é somente física, através das grandes obras de engenharia que modificam todo dia nossa paisagem. Essa mudança se dá também no âmbito das interpretações, alterando nossos conceitos e a maneira como interpretamos o mundo físico a nossa volta, essa mudança pode ser desde uma simples escadaria na volta do mercado à uma maçã caindo na cabeça de um certo Sr. Newton.