A culpa não é do mosquito
a necessidade de uma visão dialética em biologia e ecologia
By Gabriel Nakamura in chronicles
May 1, 2021
Verão, sinônimo de praia (não para quem mora a mais de 800 km dela), banho de rio, cachoeira, muito sorvete, muito tereré e… combate!! Junto com toda felicidade que as coisas do verão nos proporcionam é nessa época que costumamos ouvir com bastante frequência, nos intervalos dos nossos programas favoritos da TV brasileira, a palavra combate!
Quando o menino completa seus 18 anos as vozes na TV lhe convocam para participar do exército, combater os homens malvados, as moléstias da humanidade, as mazelas do mundo. De maneira similar, durante todos os verões daqueles que tem pelo menos duas décadas de vida, nos acostumamos a ser convocados, quase como uma obrigação militar, para combater um inimigo terrível. Porém, para tanto não precisamos de armas de fogo, napalms, sprays de pimenta ou mesmo faquinhas de serra. Para combater o inimigo anunciado no televisor precisamos de armas um pouco menos mortais. No arsenal para este combate estão as raquetes de choque, poções mágicas feitas com cravo, canela, óleos e qualquer planta verde que tiver no jardim da sua vó e exale um cheiro forte.
O porquê de tudo isso? Para combater o terror do verão, tão cruel que tem seu nome escrito em itálico, para efeitos de destaque. Preparem-se, se não forem fortes suficiente podem fechar os olhos, lá vai, seu nome é Aedes aegiptyi. Pronto, já passou, levantem as pálpebras para acompanhar o resto.
“Vamos eliminar o mosquito” brada uma voz televisiva, “o inimigo pode estar do seu lado” fala outra voz se referindo a possibilidade do mosquito estar no seu quintal, ou até mesmo, no seu sofá, “GUERRA ao Mosquito” escrito em letras garrafais em um cartaz. Por que palavras tão ríspidas contra o pobre mosquito? A mesma voz televisiva responde: “Ele é perigo pois transmite a dengue e também a zica, portanto, devemos eliminá-lo”, afinal, ninguém quer adquirir, em pleno verão, ou qualquer época do ano, uma doença infecciosa que causa dor no corpo, febre, dor atrás dos olhos e não podemos nem mesmo recorrer ao glorioso AAS (ácido acetil saliscílico), pois as coisas ficariam muito piores.
Apesar de tamanha crueldade da moléstia que o mosquito nos transmite fico me perguntando: será que a culpa de tudo é realmente do pobre mosquito? Combatendo-o, estaríamos livres de qualquer zica que seja (com o perdão do trocadilho)? Resumindo, acabar como Aedes aegyptii é a solução para um aproveitar o verão da maneira como todo trabalhador brasileiro merece? Sinto dizer, mas a resposta é não.
Imagine só a seguinte situação, vamos pensar em um cidadão comum, com poucas habilidades culinárias, se aventurando na cozinha estimulado pela onda gourmetizadora que assola o mundo. Um dos passos para elaborar uma receita desejada consiste na difícil tarefa de cortar uma cebola. Dessa maneira, o nosso personagem se mune da sua faca mais afiada. Porém, descuidado e desatento em decorrência de um dia de trabalho estressante o cidadão corta seu dedo, o que o impede de continuar cozinhando. Porém, por ser persistente ele tenta outras vezes, mas vítima de sua desatenção o pobre cidadão continua se ferindo durante a árdua tarefa de cortar a cebola. Numa atitude desesperada a personagem fictícia tem uma brilhante ideia, ela resolve eliminar todas as facas da sua casa, assim nunca mais se ferirá ao cortar a cebola. Ao retornar a tarefa ela percebe que precisa de algum objeto com características perfuro-cortante para finalmente cortar a cebola em segurança e enfim terminar seu prato. Na busca desesperada ela encontra um pedaço de vidro afiado o suficiente para realizar a tarefa, e adivinhem… ela se corta novamente.
Neste momento é plausível se perguntarem: O que tem a ver a história do cidadão desastrado que tem problemas com facas e o combate ao mosquito? Respondo: Tudo. A solução que o cidadão encontra para não se cortar carrega o mesmo problema que as soluções tomadas na tentativa desesperadora de acabar com epidemias de dengue recorrentes todo ano, que é a confusão entre o que chamamos de agente e causa.
Dick Lewontin, um notável geneticista da Universidade de Harvard destaca, de maneira muito mais profunda (e muito menos tosca que o exemplo que lhes forneci), em seu livro chamado Biologia como ideologia, o problema em se confundir o agente da ação com a sua verdadeira causa. Podemos entender melhor os conceitos de causa e agente retomando nosso exemplo culinário absurdo. A faca é o agente responsável por cortar a mão da nossa personagem, mas não sua causa, esta pode ser atribuída a sua desatenção decorrente de dias de trabalho estressantes. Mesmo eliminando todas as facas do mundo nosso personagem ainda continuaria se cortando, visto que estaria eliminando apenas o agente, o responsável imediato do seu corte, mas a causa continuaria ali, podendo se manifestar através de qualquer outro agente (no caso, qualquer outro objeto perfuro-cortante).
Neste ponto que nosso exemplo tosco faz paralelo com o caso da dengue. Podemos eliminar todos os Aedes aegypt existentes nos trópicos, porém, doenças como a dengue, ou similares a esta continuarão a existir, visto que estamos eliminando apenas o agente transmissor, e não suas causas. Então, quem, ou o que, deveríamos combater? A resposta é, suas causas, e esse combate vai muito além que a eliminação do mosquito transmissor, que é seu agente. Podemos então começar refletindo da seguinte maneira retrospectiva na busca da causa. Se o mosquito é apenas o ponto final, o agente que transmite a doença, o que conduz a uma proliferação exagerada do mosquito? Podemos arriscar algumas resposta, como por exemplo, a presença de lixos e em terrenos baldios, que possibilitam o acúmulo de água, o que se torna um prato cheio para a reprodução exagerada do nosso agente. Podemos ir um pouco além, nos perguntando os motivos pelos quais os terrenos baldios estarem sujos e as pessoas continuarem jogando lixos nestes terrenos. Podemos continuar nessa reflexão retrospectiva por muitos outros passos nessa cadeia de causas, quanto mais regredirmos, mais próximos estaremos das verdadeiras raízes dos problemas, e consequentemente, das verdadeiras medidas para suas soluções.
Pode ser mais fácil atingir os agentes ao invés de suas causas, porém, se realmente quisermos soluções efetivas para os problemas devemos nos embrenhar na busca das causas. Tenho certeza que ninguém atribui a uma hérnia de disco a verdadeira causa às dores nas costas, se a hérnia fosse mesmo a verdadeira causa uma simples intervenção cirúrgica resolveria as dores pare sempre, mesmo que você ficasse sentado na frente do computador por várias horas encurvado, como estou nesse momento. Os pesquisadores da AIDS continuam na luta para entender o mecanismo pelo qual o vírus age no organismo, isso para descobrir suas verdadeiras causas, caso estivem interessados apenas no combate de seu agente eles estariam satisfeitos com os coquetéis que suprimem os efeitos causados pelo vírus. Por mais complicado que seja a busca pelas verdadeiras causas, só essa poderá conduzir à verdadeiras soluções.
Obvio que toda essa reflexão só faz sentido se cada um desses passos for validado efetivamente, a cada passo deveremos ter o cuidado necessário para saber se estamos seguindo os métodos efetivos para descoberta das verdadeiras causas. Resumidamente, devemos nos utilizar dos métodos criteriosos de investigação que a ciência oferece, caso contrário, sem uma investigação cética e criteriosa, nada faz sentido. Dizer que a ausência de programas de educação populacional para conscientização da sociedade é a solução para o problema da dengue, pois atinge suas verdadeiras causas, sem investigação criteriosa ou teste, não tem valor, mesmo que a motivação seja combater as causas em detrimentos de seus agentes.
Os detratores da visão dialética irão dizer: - oras, essa lógica não faz sentido pois podemos nos aventurar numa cadeia de causas com infinitos passos intermediários, e nunca vamos achar a sua verdadeira raiz. Concordo, mas a ideia aqui não é achar a verdadeira causa final, mas sim chegarmos o mais próximo possível dela, e só seremos capazes disso a partir do momento em que soubermos distinguir as causas de seus agentes, como destacado por Lewontin.
Por fim, sugiro a leitura de “Biologia como ideologia: a doutrina do DNA”, um livro pequeno no tamanho e gigante em conteúdo. Lewontin é categórico na defesa da visão dialética, segundo ele, apenas a busca das causas que pode nos conduzir a reais mudanças, nas próprias palavras do autor ao se referir aos vírus e bactérias que transmitem grande parte das doenças infecciosas…“eles são os agentes das causas sociais, das formações sociais, que determinam nossas vidas, e no final é apenas através das mudanças dessas forças sociais que poderemos atingir a raiz dos problemas da saúde.”.